Texto de Antonio Carlos Popinhaki
A segunda metade do século XIX representou um período de profundas transformações em Santa Catarina, marcado pela expansão da colonização europeia e pela integração de regiões até então isoladas. Entre os projetos mais significativos deste processo histórico destacou-se a construção da estrada ligando Blumenau, no Vale do Itajaí, a Curitibanos, no planalto catarinense. Iniciada na década de 1860 e concluída em 1878, esta obra de engenharia não apenas facilitou o deslocamento de pessoas e mercadorias, mas também consolidou a ocupação planejada do território, impulsionou a economia regional e gerou conflitos que revelavam as contradições inerentes ao modelo colonial então vigente.
A Colônia Blumenau, fundada em 1850 por Hermann Blumenau, consolidara-se como um dos principais núcleos de imigração alemã em Santa Catarina. Seu desenvolvimento econômico e social dependia crucialmente da conexão com outras regiões da província, particularmente com o planalto catarinense, onde se concentravam as áreas de criação de gado e produção de erva-mate. Contudo, o Vale do Itajaí apresentava desafios logísticos consideráveis. Era densamente florestado e cortado por inúmeros rios, o seu terreno acidentado tornava extremamente difícil o transporte terrestre. Até então, as vias fluviais constituíam as principais rotas de acesso, mas estas se mostravam insuficientes para atender às demandas da expansão colonial.
Diante deste cenário, o governo provincial e a administração da colônia identificaram na construção de uma estrada terrestre a solução estratégica para integrar Blumenau a Curitibanos. Esta rota não apenas facilitaria o abastecimento de gêneros alimentícios e o escoamento da produção colonial, como também serviria como vetor para a ocupação de terras ainda pouco exploradas, seguindo o modelo de colonização baseado em pequenas propriedades familiares que caracterizava o projeto blumenauense.
Os primeiros esforços para estabelecer uma ligação terrestre entre Blumenau e Curitibanos remontam à década de 1860, quando expedições de reconhecimento foram organizadas sob a liderança de engenheiros e agrimensores coloniais. Estas incursões pioneiras enfrentaram desafios monumentais: a densa Mata Atlântica, os inúmeros cursos d'água e as escarpas da Serra do Mar representavam obstáculos formidáveis. Relatos contemporâneos descrevem um terreno extremamente acidentado, com declives íngremes e áreas permanentemente alagadas, que exigiam técnicas de engenharia rudimentares para a abertura de picadas.
Em 1867, teve início oficialmente a construção do chamado “picadão para Curitibanos”, um caminho precário e estreito, mas que permitia a passagem de tropas de mulas e carroças leves. A execução desta obra ficou a cargo de colonos recrutados pela administração colonial, em sua maioria imigrantes alemães que buscavam complementar sua renda além das atividades agrícolas. O trabalho revelou-se extremamente árduo. Além do desmatamento e terraplanagem manual, era necessário construir pontes de madeira sobre os rios e estabilizar trechos particularmente sujeitos a deslizamentos de terra. Serviu por mais de 50 anos como rota para tropas de mulas e gado, tornando-se vital para o comércio regional.
Entre as figuras mais relevantes envolvidas neste empreendimento destacou-se Emil Odebrecht, engenheiro de origem alemã que chegara ao Brasil em 1856 e se estabelecera em Santa Catarina. Contratado pelo governo provincial, Odebrecht trouxe contribuições técnicas significativas para a superação dos desafios mais complexos da construção, particularmente nos trechos montanhosos da Serra do Mar. Sua atuação não se limitou à esfera técnica. Como mediador entre os colonos imigrantes e o poder público, Odebrecht desempenhou papel crucial na manutenção da coesão social necessária à continuidade dos trabalhos.
Além dos desafios naturais, a construção da estrada exigia conhecimentos técnicos que nem sempre estavam disponíveis na colônia. Foi nesse contexto que Emil Odebrecht, engenheiro alemão radicado em Santa Catarina, assumiu um papel crucial. Contratado pelo governo provincial, Odebrecht coordenou trechos críticos da obra, especialmente nas áreas de maior declive, e introduziu técnicas mais eficientes de terraplanagem e drenagem. Sua atuação não se limitou à engenharia: ele também mediou conflitos entre trabalhadores e a administração colonial, além de atrair investimentos privados para complementar os recursos públicos. Essa combinação de expertise técnica e visão empresarial fez de Odebrecht uma peça-chave no avanço da estrada rumo a Curitibanos.
A mão-de-obra empregada na construção da estrada era majoritariamente composta por colonos, muitos dos quais já se encontravam endividados com a administração colonial. O sistema de remuneração revelava as contradições do modelo. Frequentemente, os trabalhadores recebiam vales para troca em armazéns locais em vez de pagamento em moeda corrente, ou tinham suas dívidas coloniais abatidas como forma de compensação. Esta dinâmica gerava tensões permanentes, com atrasos nos pagamentos e condições de trabalho precárias levando a protestos e fugas recorrentes.
A pesquisa de Mariana Deschamps sobre o cotidiano laboral na Colônia Blumenau revela que as obras públicas representavam simultaneamente uma fonte crucial de renda para as famílias colonas e um espaço de conflitos institucionalizados. Os trabalhadores frequentemente viam-se obrigados a prolongar seus contratos além do período originalmente acordado, enquanto as demissões privilegiavam sistematicamente os colonos casados em detrimento dos solteiros, prática que refletia a preocupação das autoridades em manter estruturas familiares estáveis na colônia.
A construção da estrada enfrentou obstáculos técnicos e financeiros ao longo de toda a sua execução. O terreno montanhoso exigia manutenção constante, enquanto as chuvas torrenciais características do Vale do Itajaí frequentemente destruíam trechos já concluídos. Do ponto de vista financeiro, a situação era igualmente desafiadora, os repasses do governo imperial e provincial ocorriam de forma irregular, levando a frequentes paralisações por falta de recursos.
O ano de 1874 marcou um ponto de virada significativo, o picadão alcançou a região onde hoje se localiza a área urbana do município de Rio do Sul, estabelecendo um ponto estratégico para a travessia do Rio Itajaí do Sul. A partir deste marco, o caminho dirigia-se em direção à serra, onde os desafios de engenharia tornavam-se progressivamente mais complexos. A subida da Serra do Mar exigiu a implementação de soluções técnicas como zigue-zagues e aterros especiais, técnicas que, embora simples em concepção, demandavam considerável esforço humano para sua execução.
Em 1878, após mais de uma década de trabalhos ininterruptos, a estrada Blumenau-Curitibanos foi finalmente concluída. Sua inauguração representou um marco no desenvolvimento econômico de Santa Catarina, permitindo o fluxo regular de gado, madeira e produtos agrícolas entre o planalto e o litoral. Além disso, a estrada funcionou como eixo estruturante para a ocupação de novas áreas no Alto Vale do Itajaí, onde surgiram núcleos populacionais que mais tarde evoluiriam para cidades como Rio do Sul e Ibirama.
Contudo, este processo de desenvolvimento trouxe consigo consequências sociais profundas. A abertura da estrada acelerou a expulsão de comunidades caboclas e indígenas da etnia Xokleng tradicionalmente estabelecidas na região, frequentemente através de conflitos violentos ou processos judiciais questionáveis. Como argumenta Tatiane Vargas em sua análise sobre a acumulação primitiva no Alto Vale do Itajaí, a colonização foi marcada por um processo de “mercantilização das terras”, no qual agentes econômicos vinculados ao poder político apropriaram-se de territórios tradicionalmente ocupados por povos originários.
Com a Proclamação da República em 1889, a estrada manteve sua importância como eixo de desenvolvimento regional, embora sua manutenção continuasse problemática. As primeiras décadas do século XX testemunharam tentativas de modernização da via, mas os investimentos mostraram-se insuficientes para transformá-la em uma rodovia moderna. Somente com a construção da BR-470, décadas depois, o trajeto original receberia melhorias significativas, embora trechos da antiga estrada ainda possam ser identificados na paisagem contemporânea.
A construção da estrada Blumenau-Curitibanos constituiu um empreendimento que sintetizou as aspirações e contradições do século XIX catarinense. Se por um lado cumpriu seu papel como instrumento de integração territorial e consolidação do projeto colonial, por outro revelou-se um espaço de exploração laboral, conflitos agrários e marginalização de comunidades tradicionais. Seu legado permanece visível não apenas na malha viária do estado, mas também na configuração socioeconômica do Vale do Itajaí, onde os efeitos deste processo histórico continuam a se fazer sentir na contemporaneidade.
Referências para o texto:
ADÃO, Everson Felipe. Colonização, Trabalho e Litígio: a construção da estrada Blumenau - Curitibanos. Dissertação do Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC, 2023, 136 p.
DESCHAMPS, Mariana Luiza de Oliveira. Na trilha das estradas: a vida cotidiana e o trabalho na colônia Blumenau (1850-1880). 2015. 184 f. Dissertação (Mestrado) - Curso de História, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2015.
VARGAS, Tatiane Aparecida Viega. Acumulação primitiva e formação socioeconômica: Análise do processo de acumulação na formação da microrregião do Alto vale do Itajaí. 2017. 156 f. Dissertação (Mestrado) - Curso de Pós-graduação em Desenvolvimento Regional, Universidade Regional de Blumenau, Blumenau, 2017.
WITTMANN, Angelina. O Caminho de Blumenau-Curitibanos - Segunda metade do Século XIX. Blog pessoal.
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