16 abril 2025

O Núcleo Tritícola de Curitibanos


Texto de Antonio Carlos Popinhaki


Na metade do século XX, os presidentes do Brasil Getúlio Vargas e Eurico Gaspar Dutra tinham, entre as muitas preocupações de seus governos, o objetivo de aumentar a produção nacional de trigo. A meta era alcançar a autossuficiência e reduzir significativamente a dependência das importações, principalmente da Argentina.

O Núcleo Tritícola de Curitibanos (NTC), localizado no planalto catarinense, foi uma das iniciativas mais emblemáticas da metade do século XX objetivando promover a colonização agrícola, o estudo e o cultivo de trigo. Sua criação, em 1948, por meio da Lei Ordinária da União nº 586/1948, onde em 23 de dezembro daquele ano, o então Presidente da República Eurico Gaspar Dutra autorizava a compra via desapropriação de áreas de terras para a instalação de Núcleos Tritícolas. A promulgação dessa Lei também refletia a política de modernização do campo e a busca pela autossuficiência em cereais, estratégia impulsionada pelo governo federal em parceria com estados produtores. Com um crédito inicial de 10 milhões de cruzeiros, o projeto visava não apenas aumentar a produção tritícola, mas também estruturar uma comunidade rural organizada em moldes cooperativistas, combinando assistência técnica, infraestrutura e inclusão social.

O acordo firmado em 17 de maio de 1949 entre o Ministério da Agricultura e o Governo de Santa Catarina definiu os parâmetros para a instalação do Núcleo Tritícola de Curitibanos. Uma comissão liderada pelo Dr. Álvaro Bittencourt Lobo Filho, diretor do Departamento de Terras e Colonização, selecionou terras no município de Curitibanos, adquiriu e loteou 5.500 hectares, destinando 4.815 hectares a 115 lotes coloniais. A infraestrutura incluía casas para colonos, escola para seus filhos, oficinas, depósitos e até um posto de saúde, evidenciando a preocupação com o bem-estar dos agricultores. A primeira fase (1949–1953) concentrou-se na preparação do terreno e na seleção de colonos, muitos deles trabalhadores rurais sem tradição em trigo, submetidos a um “período probatório de cinco anos”. Esta etapa foi conduzida pelo Dr. Álvaro Bittencourt Lobo Filho, então Diretor do Departamento de Terras e Colonização do governo de Irineu Bornhausen.

Em 1953, iniciou-se a segunda fase do projeto com a visita do Governador Irineu Bornhausen e do prefeito Lauro Antonio da Costa ao núcleo, consolidada pelo acordo intergovernamental de 18 de maio daquele ano. O período coincidiu com uma safra excepcional de trigo em Santa Catarina (120 mil sacas, ou 7.200 toneladas), em contraste com os demais estados brasileiros, que enfrentavam problemas com pragas agrícolas. Para impulsionar a produção, o núcleo foi equipado com maquinário moderno, incluindo trilhadeiras fornecidas pelo Estado, e falou-se da construção de uma ambiciosa obra, a “Estrada do Trigo”, visando ao escoamento eficiente da colheita.

Essa segunda fase do Núcleo Tritícola de Curitibanos representou a transformação do projeto em um modelo pioneiro de colonização autossustentável. Com a renovação do acordo em 24 de julho de 1958, agora financiado exclusivamente com recursos federais, estabeleceram-se metas estratégicas para o desenvolvimento regional: a fixação de triticultores nos 4.815 hectares, a implementação de assistência técnica especializada e a manutenção da infraestrutura viária necessária, com o cultivo do trigo como atividade econômica central.

Sob a competente administração do engenheiro agrônomo Francisco Hoeltgebäum (1953-1964), o núcleo implementou um inovador sistema de cooperativa integral, organizado em três eixos fundamentais: compras coletivas de insumos agrícolas e bens de consumo, comercialização conjunta da produção e crédito rural para financiamento das atividades agrícolas. A Cooperativa Mista do Núcleo Tritícola, formalmente constituída em 1958, assumiu progressivamente a gestão de serviços essenciais que incluíam a mecanização agrícola com tratores e colheitadeiras, a administração da granja de reprodutores (com rebanhos de suínos das raças Duroc e Landrace, e bovinos Holandês e Schwyz), e até mesmo o transporte diário de leite para Curitibanos, localizada a 34 km de distância.

Em 1951, durante a gestão de Irineu Bornhausen, Santa Catarina distribuiu 1,1 milhão de quilos de sementes de trigo para o plantio. A partir desse ano, a colheita de trigo em Santa Catarina foi abundante, contrastando com outros estados brasileiros, que enfrentaram perdas devido ao ataque de uma lagarta em seus trigais.

Anos mais tarde, na safra de 1967/1968, a Associação Rural de Curitibanos tornou-se o ponto central para a distribuição das sementes de trigo, demonstrando a continuidade do cultivo do cereal no estado.

Dessa forma, Santa Catarina consolidou-se como uma importante região produtora de trigo no Brasil, com avanços significativos nas décadas de 1950 e 1960.

Um dos aspectos mais notáveis deste período foi o rigoroso sistema de seleção de colonos, dividido em três fases distintas. A primeira etapa, denominada "seleção negativa", admitia agricultores em situação econômica vulnerável. Estes passavam por um estágio probatório de cinco anos, com acompanhamento técnico e social intensivo. A fase final, chamada "seleção positiva", era conduzida pelos colonos mais antigos, que avaliavam a adaptação dos novos membros à comunidade, garantindo assim a coesão social e o sucesso do projeto coletivo.

A administração também investiu em assistência social: escolas rurais, atendimento médico e odontológico, e até a construção de um clube comunitário e campos de esporte.

Durante a gestão do prefeito Generino Fontana (1993/1996), quando o município de Frei Rogério foi criado em 20 de julho de 1995, a vice-prefeita Marilúcia da Silva Costa planejava e articulava a possibilidade da instalação da sede do novo município no local que havia abrigado a sede do Núcleo Tritícola. Para isso, encarregou o senhor Aldair Goeten de Moraes, então Diretor do Museu Histórico Antônio Granemann de Souza de Curitibanos, de visitar a Secretaria Estadual da Agricultura e pesquisar sobre a história do Núcleo Tritícola de Curitibanos.

Aldair cumpriu a missão, registrando todas as informações que considerou relevantes, incluindo cópias de documentos e uma lista das primeiras famílias assentadas no local. Segundo suas anotações, o Núcleo Tritícola de Curitibanos possuía uma estrutura organizada, com atendimento à saúde garantido por duas enfermeiras, ambas com curso de obstetrícia e um Jeep com dois motoristas disponíveis dia e noite. Além disso, uma vez por semana, um médico se deslocava de Curitibanos até a sede do núcleo. Aldair não tem certeza absoluta, mas acredita que um desses médicos possa ter sido o doutor Hélio Anjos Ortiz, que posteriormente tornou-se prefeito de Curitibanos e Secretário da Saúde do Estado de Santa Catarina. Caso alguma mulher entrasse em trabalho de parto e apresentasse complicações, as enfermeiras, caso não conseguissem resolver a situação, acionavam os motoristas do Jeep para transportar a parturiente até Curitibanos.

Na sede do Núcleo Tritícola de Curitibanos tinha animais confinados num mini zoológico. Animais silvestres da região de Curitibanos. Também haviam adquirido touros e porcos de raça para servirem de reprodutores para atender os associados moradores dos lotes. Destacavam-se edificações essenciais como oficina mecânica, marcenaria, almoxarifado e um armazém geral, além de unidades para beneficiamento de cereais, equipadas com máquinas de classificação de sementes e misturadores de ração. A saúde era atendida por uma farmácia com enfermaria, gabinete médico e dentário, complementada por visitas semanais de médicos. A educação dos filhos dos assentados era garantida por escolas mantidas com professores fornecidos pelo Estado, incluindo aí uniformes para os alunos, enquanto o lazer e a integração social ocorriam em um clube social, campos de esporte e igrejas construídas em colaboração com diversas denominações religiosas.

A gestão do núcleo priorizava a autonomia progressiva dos colonos. Um sistema rigoroso de seleção, com estágio probatório de cinco anos e apoio técnico, assegurava a adaptação dos novos membros. Uma comissão formada por colonos antigos zelava pelo desenvolvimento da comunidade, enquanto reuniões mensais discutiam problemas e metas. A administração atuava indiretamente, oferecendo orientação técnica, mantendo vias de acesso e colaborando com órgãos de pesquisa. Iniciativas como a transferência gradual de encargos para a cooperativa e a evitação de dependência de auxílios externos refletiam o compromisso com uma comunidade “economicamente estável e socialmente equilibrada”, conforme vislumbrado no acordo firmado entre a União e o Estado de Santa Catarina  de 18 de maio de 1953.

Após o período probatório de cinco anos, os assentados recebiam um título provisório de propriedade, válido por quinze anos, com a condição de que não poderia ser transferido a terceiros, exceto em casos de sucessão hereditária. A propriedade só era considerada definitivamente regularizada após vinte anos, quando então se tornava passível de negociação, caso o proprietário desejasse.

Assim, o Núcleo Tritícola combinava estrutura física, suporte técnico e organização social para criar um modelo de colonização cooperativa, onde a terra, o trabalho e a tecnologia se articulavam em prol de um desenvolvimento sustentável.

Com o passar dos anos a seleção de colonos evoluiu para um sistema de avaliação por comissões internas, compostas por agricultores veteranos, que zelavam pela coesão da comunidade. Contudo, desafios persistiram, como a dependência de verbas federais e a dificuldade de alguns colonos em quitar os lotes, cujo preço foi fixado em Cr$ 2.000,00 (dois mil cruzeiros) por hectare em 1962, com pagamento em dez anos.

A partir de 1964, com a saída de Hoeltgebäum, o Núcleo Tritícola de Curitibanos passou por mudanças administrativas, sob gestão de agrônomos como Susumu Imaguire e Nilton Boing. Parte das terras não loteadas deu origem ao Núcleo Celso Ramos, voltado à colonização japonesa. Embora o Núcleo Tritícola de Curitibanos não tenha alcançado a autossuficiência financeira prevista, seu legado é inegável:


1. Tecnificação Agrícola: Introduziu práticas modernas como rotação de culturas e seleção de sementes.  

2. Organização Comunitária: A cooperativa foi um marco na defesa dos interesses dos pequenos produtores.  

3. Infraestrutura Rural: Escolas, saúde e estradas melhoraram a qualidade de vida na região.


O Núcleo Tritícola de Curitibanos foi um laboratório de políticas agrárias, onde se testaram ideais de colonização dirigida, cooperativismo e extensão rural. Seu declínio não apaga seu papel na fixação de famílias e na diversificação da economia catarinense. Documentos como os acordos de 1949 e 1953, os relatórios anuais e os registros de lotes preservam a memória dessa experiência, que antecipou debates ainda relevantes sobre desenvolvimento territorial e agricultura familiar no Brasil. O governo federal abriu crédito para a implantação de outros Núcleos Tritícolas em alguns estados, como o Rio Grande do Sul, Goiás e Minas Gerais.

Em 24 de outubro de 1975, o prefeito municipal de Curitibanos, Onofre Santo Agostini, sancionou a Lei Ordinária Municipal n.º 1.184/1975, autorizando a doação de um terreno de 5.000 metros quadrados no perímetro urbano de Curitibanos à Cooperativa Mista do Núcleo Tritícola de Curitibanos. O objetivo era a construção de uma sede administrativa na área urbana, complementando as operações rurais da cooperativa, cuja base produtiva localizava-se a 34 quilômetros da cidade.

Contudo, os dirigentes da cooperativa não chegaram a utilizar o terreno doado dentro dos prazos estabelecidos pela lei. Consequentemente, conforme previsto no dispositivo legal, a área retornou ao Patrimônio Municipal sem que houvesse direito a indenizações por parte da cooperativa.

Esta iniciativa legislativa visava fortalecer a estrutura institucional da cooperativa, facilitando seu acesso aos centros urbanos e consolidando seu papel no desenvolvimento agrícola e comunitário da região, embora não tenha logrado os resultados esperados na prática.

Contudo, entre o final da década de 1970 e o início dos anos 1980, muito tempo depois de os assentados e membros da Cooperativa Mista do Núcleo Tritícola de Curitibanos terem recebido seus títulos de posse definitivos, ou até mesmo vendido suas terras a terceiros, já não se falava mais em trigo ou triticultura na região. Trinta anos após a criação do Núcleo Tritícola, a maioria dos moradores daquela comunidade havia diversificado sua produção. Em certo momento, migraram para o cultivo do alho, e Curitibanos viveu uma verdadeira febre de plantio do produto, a ponto de o município ganhar o apelido de "capital do alho". O cheiro do alho impregnava o ar, assim como, num passado não muito distante, o aroma da araucária serrada dominava a cidade devido à intensa atividade das serrarias locais.

Não demorou para surgir uma nova cooperativa: a “Cooperativa do Planalto Catarinense — Cooperplac”. Com sede na Rua Coronel Vidal Ramos, era uma instituição forte que atendia Curitibanos e região durante a era de ouro da produção de alho. No entanto, após mudar seu nome para Coperalho, a cooperativa não resistiu aos impactos da entrada maciça do alho argentino e chinês no mercado brasileiro e acabou fechando as portas. Assim, encerrou-se a trajetória não apenas da Cooperativa Mista do Núcleo Tritícola de Curitibanos, mas também de suas sucessoras.



Referências para o texto:


Acordos intergovernamentais (1949–1958).


Arquivos do Departamento de Terras de SC.


Brasil — Lei Ordinária da União nº 586/1948.


Com informações de Aldair Goeten de Moraes


Com informações de Luiz Marcos Cruz


Curitibanos — Lei Ordinária Municipal n.º 1.184/1975.


Relatórios da Cooperativa do Núcleo Tritícola de Curitibanos (década de 1960).

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